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LOJAS AFRICANAS: Territórios de Afeto

Pressionades. Exaustes. Dolorides. Consumides estamos pelo aumento da carga de trabalho e dos fluxos que direta e/ou indiretamente provocam desequilíbrio, causam adoecimento.  Assim, abrir espaço na agenda, abrir o coração para acessar a memória de uma vida e compartilhar num tempo de escuta, num possível tempo de reconstrução e de fortalecimento - atravessamentos quiçá em direção a processos de cura - não é tarefa fácil. 

Com os olhos abertos para dentro, revisito o fio que se organiza diante das missangas - Rio Grande, Pelotas, Novo Hamburgo, Osório, Porto Alegre. O projeto LOJAS AFRICANAS: Territórios de Afeto conquistou o financiamento do Pró-Cultura RS, Fundo de apoio à Cultura, do Estado do Rio Grande do Sul.

“... um tempo de conversa e de troca entre Artistas Visuais Afro-gaúchos ou Artistas Visuais Afro-brasileiros que aqui possuam residência...”.

A ideia inicial sofreu alterações importantes. Por  exemplo: o planejamento dos encontros presenciais - imensamente desejados - necessitou readequação, em virtude do aparecimento da Covid-19 e do risco de morte frente à explosão numérica de contaminados (é importante sublinhar que tal fato, consolidado sobre as populações desfavorecidas, agudizou ainda mais o conjunto de desigualdades pré-existentes). Como alternativa, realizaram-se as reuniões em ambientes virtuais, através da internet.

Ao mesmo tempo em que me vi à luz dos avanços tecnológicos de um presente que aponta uma série de caminhos e facilidades, a privação de recursos digitais e a limitação de acesso sempre se colocaram como empecilhos. Dessa forma, soma-se à vasta e vergonhosa quantidade de violências – num contexto nacional de extrema fragilidade social e econômica - também a exclusão digital/informacional.   

Nem vida, nem arte se fazem sem movimento. Aprender na voz do outro, derramar sorrisos e lágrimas.

As experiências vividas nesse tempo culminam nos trabalhos aqui reunidos [fotografias/gravuras/fotogravuras] dando mostra da amplitude do conjunto de artistas participantes e da pluralidade, enquanto experiências, visões de mundo e desejos. O protagonismo. O pretagonismo. Necessários cinquenta dos meus anos.

Fomos muites – somos. Outra vez, mostrou-se evidente a importância de se encontrar, se olhar, se conhecer, ouvir, falar, sorrir e imaginar a possibilidade de voltar a ser. Na sucessão das noites e dos sonhos, seguem os participantes a sobrepor camadas tão finas que não se podem admirar e em número incalculável.

Sem os aparelhos de ver, tomo distância e me interrogo sobre o que vem a ser esse sonho de insistência e aposta.

Avancemos aquilombando, Lanceiras e Lanceiros!

LEANDRO MACHADO - Coordenador Geral do projeto LOJAS AFRICANAS: Territórios de Afeto

LOJAS AFRICANAS, ENCONTRO E CONVÍVIO

 

“Estamos aqui para avançar de modo coletivo,

que é o modo mais bonito e potente de avançar pela vida.”

 Leandro Machado, Lojas Africanas

 

Dumbanengue: o som das timbilas e tambores misturado ao rap, ao semba, ao kuduro e à marrabenta, o burburinho em várias línguas e os bordões dos vendedores. Uma profusão de verduras e legumes coloridos, animais em gaiolas ou ciscando ao redor, roupas tingidas com pigmentos naturais e símbolos étnicos milenares, aromas de especiarias, ervas, raízes e do caril fumegante cozido em fogo de brasa. Homens pedalando na rua suas máquinas de costura; mulheres carregando enormes cestos de frutas na cabeça. Pilões de todos os tamanhos e formatos, peças para o carro, CDs piratas, capas de celular, lingeries. Mel, dendê, peixe seco, coco, feijão, mandioca, gengibre, amendoim, agricultura familiar, costura familiar, arte familiar. Uma África de antes e de agora. As lojas na África negra muitas vezes não são só lojas de comprar e de vender; às vezes nem são lojas, mas feiras livres, com objetos sobre capulanas estendidas nas calçadas, pessoas sob toldos em mercados de ruelas infinitas. São antes lugares de encontro, vida, música, convívio, conhecimento.

Lojas Africanas – Territórios de afeto, projeto do artista Leandro Machado, que desde o ano 2004 já teve várias edições e desdobramentos, também fala de lojas que não seguem a lógica de vender e comprar produtos ou artefatos, tampouco de ser uma “vitrine” para expor trabalhos de artistas contemporâneos, apenas. Quem entra nessas lojas sabe que são um espaço-tempo de receber amigos em casa, escutar atentamente, dialogar afetos, libertar sentidos, acolher dúvidas, abraçar medos e ansiedades, construir coletivamente, sonhar futuros. Lojas Africanas é resistência, redemoinho, encruzilhada, tessitura. É antes a sala de visitas de um anfitrião que oferece sensibilidade, alegria e hospitalidade, na sua grande e reconhecida habilidade para convergir talentos de várias gerações, com a bênção dos mais velhos e o agô dos mais novos. Nas palavras do próprio artista: “as Lojas Africanas são o fio que une as miçangas, que são as cidades, as pessoas, suas palavras, suas artes”.

O fio também conduz passado, presente e futuro, na medida em que resgata e preserva nas artes da fotografia, desenho, pintura, gravura, vídeo, instalação, entre outras, a memória dos que vieram antes, a ancestralidade de quem construiu com sua força de trabalho as universidades, praças, museus, galerias de arte, sem tê-las frequentado ou nelas exposto as suas criações. Apesar de constituírem espaços públicos e abertos, nem sempre são espaços penetráveis pela população negra e periférica, exceto em ações pontuais, como durante o Novembro Negro. Essa exclusão se perpetuou de alguma forma nas ações culturais durante a pandemia do coronavírus, devido à limitação de acesso a tecnologias, seja pela baixa qualidade da conexão à internet, seja pela falta de tempo e de equipamento adequado para atividades remotas.

Nesse contexto, o Projeto Lojas Africanas abriu um tempo e um espaço de convívio e entre cinquenta artistas visuais afro-gaúchos (ou afro-brasileiros com residência no Rio Grande do Sul) de cinco cidades - Pelotas, Rio Grande, Osório, Novo Hamburgo e Porto Alegre - para apreciação e discussão de portfólios, bem como para a partilha de experiências, pesquisas e trajetórias. Os encontros em princípio deveriam acontecer presencialmente, com o contato físico da corporeidade, a audição dos sons, o tato, o abraço e a troca de olhares, sem a interferência dos aparelhos tecnológicos. Porém, mesmo com o distanciamento decorrente da situação pandêmica, nada impediu as emoções, o ritual, o riso, o choro, a beleza, a música, a poesia.

Lojas Africanas é territorialidade negra, um terreno em que se perpetuam os valores civilizatórios afro-brasileiros, e nisso reside também sua função pedagógica. A educação pela palavra, pela oralidade, pela circularidade de saberes dá continuidade à história das comunidades, aos saberes discutidos no cotidiano das periferias negras, nas atividades de escolas da rede pública, nos espaços culturais comunitários, nos coletivos negros universitários, na atenção à saúde da população negra, nas ações afirmativas, nos grupos de capoeira, rodas de slam e hip hop, nos conselhos e representações políticas da comunidade negra na região sul. É nessa territorialidade que o afeto se torna potência transformadora não do sujeito-artista, individualmente, e sim do interesse coletivo, pertencimento a algo maior. Constituir-se junto aos outros.

Assim, se as identidades são não um ser, mas um querer-ser, um devir em permanente construção, Lojas Africanas é terreiro fértil, território educativo, comunitário, artístico, sagrado, ancestral, que resgata um princípio fundamental e basilar do pensamento africano, o ubuntu: eu sou porque nós somos. Essa categoria epistêmica e ontológica dos grupos que falam as mais de seiscentas línguas bantu é formada de dois elementos: “Ubu-“ como o mais generalizado “ser” (se-ndo), profundamente marcado pela incerteza, por estar ancorado na busca da compreensão do cosmos numa luta constante pela harmonia; e o segundo, “-Ntu”, que significa “pessoa, ser humano”. Segundo essa filosofia, ser humano é afirmar a humanidade própria através do reconhecimento da humanidade dos outros. Além disso, é escolher a preservação da vida de seu semelhante acima do lucro e da riqueza. Que essa potência de vida e coletividade siga em frente, se multiplique, transponha fronteiras e se renove nas próximas gerações de artistas afro-gaúchos, fortalecendo e consolidando esse forte vínculo de solidariedade. Muito axé!

 

 

LETÍCIA PONSO

Núcleo de Estudos Afro-brasileiros e Indígenas

Instituto de Letras e Artes - Universidade Federal do Rio Grande

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